Uma vida roubada
Estancou. Agarrou na camisola como se, com esse gesto, apertasse o próprio coração. Fechou a mão com força, os nós dos dedos tornaram-se brancos, salientes, a mão cadavérica tremendo. Lágrimas afloraram nos olhos baços. Pregas de pele pendiam do rosto. Via-se ao espelho do salão do hotel, não se reconhecia. Quem era ele? Como tinha ali chegado, quantos anos tinha?
O homem surgiu no espelho. A voz suave roçou-lhe nos ouvidos:
- Vamos, Pai.
Pai? Virou a cabeça e mirou o estranho. Quando fora pai? Quando amara para ter um filho, quando o embalara, embevecido?
Como tinha mirrado tanto? Tinha de esticar o pescoço para poder olhar aquele grande homem. Houve um tempo, sim, recordava-se, que era alto, tão alto que tinha de baixar a cabeça sempre que entrava em casa, para não bater na trave da entrada. Quando deixou de bater? Quando é que a sua vida começou a encolher, a cabeça a sobrar?
Tantos espaços vazios dentro de si tinha agora.
- Onde vamos? – perguntou, por fim.
- Trouxe-o para almoçar, Pai. Lembra-se? Era aqui que costumava trazer a Mãe todos os anos, no seu aniversário.
- A Mãe está aqui? – ainda tremia.
Cinco anos passados e ele repetia a mesma pergunta.
- Está, filho? A Mãe está aqui?
Entraram na sala de jantar. Parou, assustado. Ao longe, uma mesa de dois lugares, com um arranjo de rosas brancas ao centro.
Recordou-se, por fim. Chorando, murmurou:
- A minha vida, filho. Roubaram-me a minha vida…
incrível, Margarida, como consegues tocar sempre a corda sensível. e tão bem escrito, tão fluido, tão breve e intenso.
ResponderEliminar:)
Eliminarnão tinha ideia até começar a escrever, nesta pequena hora do almoço.
obrigada.
Ah, que tocante!! Você tem um dom, Margarida, que é soberbo.
ResponderEliminarobrigada, Eduardo :)
Eliminaràs vezes, às vezes...
Tocante ... muito... deu-me um nó.
ResponderEliminarobrigada, Rosa.
EliminarToca mesmo :)
ResponderEliminarGostei muito
beijinhos
obrigada, Francisco :)
Eliminarbjs.
Foste ao ponto certo, sem ser demasiado óbvio.
ResponderEliminarMuito bom...
obrigada, João.
EliminarUm retrato do que de melhor podemos fazer pelos nossos velhos: dar-lhe atenção. Nem que seja apenas um pouquinho. Eles irão sentir a diferença...
ResponderEliminarGrande Margarida!
eu não saberia lidar com a demência. enfim, teria de me adaptar. com a falta do ente querido, é muito, muito difícil... isso eu sei.
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